História da Semana



Minha avó Nati

 



Era uma mulher miúda de infinitos olhos azuis  e pés pequeninhos ,o que a fazia andar como se dançasse sobre a terra molhada.

Chamava-se Maria da Natividade. Foi minha avó Nati, mãe de meu pai.Tia Nati de inúmeros sobrinhos e sobrinhas a quem abençoava com sua bondade.Em nenhum de seus documentos constava sobrenome .E ela os tinha dos bons.Coisas antigas.Ficou sendo , assim,Nati.

Sabia fazer goiabada cascão, biscoitos de polvilho e travesseiros de paina que eram pedacinhos de nuvem.

Sabia aplicar injeção.Habilidade rara , muito apreciada e necessária nas lonjuras canavieiras onde vivia.Muitas noites,  nos tempos de criança, ouvi chamarem minha avó no meio da noite para socorrer alguém , com injeção de doutor ou com chá, mezina, cataplasma , reza. Tanto fazia.Lá ia ela.Ajudar a curar, a nascer, a morrer. Uma noite, me lembro de estar por lá de férias.Fazia frio.Acho que chovia.Ouvi vozes .Ouvi seu nome . Ouvi seus passos.Quando abri a janela que dava pra noite fria sobrevoando o canavial, lá ia ela, pelo carreiro.Uma sombra pequena, vestida em capa de capuz que a fazia parecer vinda de longe no tempo. Boiava na escuridão.Em uma das mãos, um lampião de querosene.Na  outra, o sapato pra calçar quando chegasse ao destino . No braço , uma sacola com seringa, álcool, algodão e sabe-se lá mais o quê.À sua volta, resplandecia sua bondade e infinita ternura por tudo o que fosse vivo. Fora chamada, pôs-se a caminho.Nunca discutiu um chamado.

Adorava ter a casa cheia de crianças. Acho até que esperava nossas férias com mais ansiedade do que nós.A casa grande , antiga , severa, enchia-se de uma infinidade de primos e primas. Ela adorava encher a mesa que tinha a função de ser o coração da casa com panelas onde imperavam galinhas felizes , destas de quintal, pegas aos tombos; feijão com lingüiça;arroz branquinho perfumado a alho; aipim frito;farofas gordas e coisas menos impressionantes como quiabos, tirados cedo da rocinha ao lado  da janela da cozinha. 

A molecada se espalhava, obedecendo à sua ordem de servir-se .Alguns ousavam protestar:- Já almocei, Tia Nati. Ela respondia impávida:- almoça de novo.Pegue só o que gostar.Todos obedeciam gulosos.

Eu, neta mais velha,nascida em sua casa e  cama, tinha meus privilégios.O coração, a moela e o sangue que ela deixava endurecer e punha na panela eram meus.Ninguém se atrevesse  a burlar-me. Ela sempre tomava meu partido.

E reinava na cozinha buliçosa dando apenas uma ordem :- senta que quem come em pé é cavalo.Exigia que cada criança sentasse para comer direito.

Nas noites de inverno, na mesma mesa, lustrosa, pesada, cúmplice, reunia as sobrinhas mais velhas , noras e crianças ávidas, para despenuchar paina. Quer  dizer, tirar as sementes da fruta  já seca , de polpa branca e macia como algodão que lhe servia para fazer travesseiros de embalar sonhos e sono.

Contava então, a muitos pedidos, histórias de nossa gente.Como eram este ou aquele parente que só conhecíamos de velhas fotos cinzas .

Contava também casos de assombração e de afogados.Tinha um medo atávico do mar. Morava a léguas dele.Mas temia-o, reverente .

Quando começamos a crescer e a ir em festivas comitivas para a praia mais pertinho pra pegar siri e tainha, vovó desassossegou-se .Com ar de quem só comenta , desfilava casos.Era seu jeito de nos proteger.Acho que queria nos impregnar de seu medo pelo mar, traiçoeiro como ele só , como ela dizia.

 Gostava de falar. Sua voz enchia a casa . Falava o tempo todinho.Até sozinha. Hábito que eu herdei.Vai ver não é hábito .É herança. Minha avó Nati não vivia .Passarinhava com singeleza pelo mundo.

Há quem a tenha visto depois de se ter ido passarinhar em outras paragens, ou como dizia ela, cantar em outra freguesia.

Viram-na à cabeceira de meu sobrinho –afilhado que ao nascer veio quase se indo de volta.Certo dia, na UTI, foi vista , sentada à cabeceira do menininho bisneto, com sorrisos de quem cuida.

Quem a viu , insuspeita pessoa, jamais lhe tinha posto os olhos nem em fotos.Ao dizer de sua presença , meu pai, cabreiro que só ele, pediu descrição, fina , exata.Que veio e deixou meu pai de olhos de riachinho e coração mole .

Anda passarinhando por aí minha avó.Cuidando, curando, distribuindo-se .

Ensinou-me  a bondade minha avó Nati.





Os Natais de minha infância

Os Natais de minha infância tinham cheiro de canela. A canela com açúcar nos enfeitiçava de cima da rabanada que esperava desde cedo sobre a mesa. Havia também castanha cozida, pastéis, e , luxo dos luxos, ameixas.
Mamãe assava pernil , fazia farofa e arroz enfeitado. Papai comprava vinho de garrafão porque não éramos versados nas sutilezas de Baco naqueles entãos.
Passávamos o dia de coração na mão.Será que Papai Noel traria nossos pedidos?Afinal , havíamos nos esforçado honestamente para sermos bons durante um ano inteirinho. Só muito mais tarde, fui compreender que ser bom é muito, muito mais difícil do que eu menina supunha. Continuo tentando. Honestamente.
Desde cedo a casa virava pelo avesso entre panos e vassouras, colchas novas, roupas novas e cheiros promissores vindos da cozinha.
Á tardinha, nos davam um criterioso banho, nos punham as roupas novas feitas, como tudo o mais, na encantada oficina em que nossa casa se transformava à espera do Natal. E a gente nem pensava em correr, suar, sujar-se. Seria correr sério risco. Em fatiotas alegres, alma inocente e coração aos pulos, a família ia à Missa do Galo. Naquele tempo ela era rezada à meia –noite mesmo. Sem desconto pras profanas violências.
Era sempre uma missa muito bela e comovente. Eu, invariavelmente , chorava. Até hoje não atino com o motivo que me faz chorar em toda missa, culto, casamento, batizado, crisma. Só sei que choro. Sou assim.
Na volta da Missa, que maravilha. Lá estavam nossos presentes. Mesmo que muitas vezes não fossem o que havíamos pedido, sempre estavam a nossa espera. Sempre achei que Papai Noel, por ser tão velhinho, se enganava. Continuo achando. Papai Noel sempre terá um lugar quentinho em meu coração para se aquecer do frio da descrença .
Era então que a festa se animava.Na rua em que cresci, num subúrbio do Rio de Janeiro, rua chamada lindamente de Três Corações, morava uma gente solidariamente animada. As casas se abriam, as mesas se ofertavam em sua singeleza de gente simples. As casas se iluminavam alegres, ressoando em risos e brindes.
Todos partilhavam a mesma alegria, solene e pueril ao mesmo tempo.
Ah! Nosso Natais.Tão singelos eram. Não havia tanta belezura para se comprar como hoje. Então, a gente inventava.
Lembro-me de um Natal em que meu pai fez uma inesquecível árvore. No quintal de nossa casa, havia não sei como, um altíssimo pinheiro, uma destas tradicionais árvores de Natal, que ignorando o clima carioca erguia-se soberba, imponente. Pois, papai, cortou-lhe a porção mais alta .Eu era pequena, não vi, portanto, não sei que artes que usou. Lembro-me apenas de dançar em volta do pinheiro de verdade me sentindo a criança mais feliz da rua. Como alegria pouca é bobagem, papai nos deixou ajudá-lo a enfeitar a árvore. Ficou magnífica , cheia de algodão e bolas de soprar.É verdade que vez por outra uma bola estourava , mas este pormenor não estragava o fascínio.
A ternura que este Natal evoca só tem paralelo com um outro Natal vivido muitos anos depois.O primeiro Natal de meu filho.Um neném gordinho e alegre, já engatinhando, foi coberto de presentes por muitos e amorosos avós, tios e tias , cada um deles fiel à sua função de guardião do mito do Bom Velhinho.
Naquele primeiro Natal de meu filhote, a moda era brinquedos de corda para bebês. Eram cachorrinhos, patos, abelhas, carrinhos, trens e aviões. Uma maravilha vê-lo no corredor a engatinhar atrás dos barulhentos e semoventes brinquedos. Meus olhos deixavam meu coração transbordar em amorosas lágrimas.
Estes dois Natais atam as pontas de minha história como a velha canção de minha infância:” Natal , Natal das crianças ! Natal do Menino Jesus.”
Neles há lugar pra Missa e culto; rabanada e peru; Papai Noel e Jesus; alegria e lágrimas.
Festejemos , portanto. Afinal, “ O Menino nasceu.O mundo tornou a começar. “ Feliz Natal.




As histórias de nossa gente

Em minha família, sempre cultivamos as histórias de nossa gente. Cresci ouvindo as longas aventuras de Vovô Neco, vovó Dindinha e de inúmeros tios e tias e incontáveis primos. Coisa boa este hábito.Nos dá chão.Deixa-nos claro que não somos seres isolados.Somos pontinhos em longa linha de seres.
Uma história que meu pai sempre gostou de contar fala de um canal que passa pelas terras de nossa família.
Cresci vendo aquilo que sempre me pareceu um riozinho, cercado de antigas árvores.Pés de Jamelão, jaqueiras, rendilham suas margens, fazendo-lhe sombra e abrigando o gado nas horas de sol ardente. Nunca ia muito perto, pois havia mato demais e eu tinha medo de mato, então.Tinha muitos medos.
Pois um dia, meu pai levou-me até suas margens e contou-me sua história.Não era riacho.Era um canal. Cavado por braços escravos. Fiquei assombrada. Conto a história.
Deu-se que, no século XIX, Campos dos Goitacazes foi a primeira cidade da América Latina a ter luz elétrica. O imperador precisava ir inaugurar a tal iluminação.Mas como ir da Corte do Rio até Campos sem estradas? De navio, claro.O único problema era que Campos não tinha porto. Não tem até hoje, pois, sua plataforma continental, riquíssima, é, entretanto, abrupta. Por outro lado, já naquele tempo Macaé, um pouco mais ao sul, já tinha seu porto. Mas como levar o velho imperador do porto de Macaé até Campos? A viagem à cavalo era longa, difícil.Ele não agüentaria.
Os poderosos barões do café da região, senhores de tudo sobre a terra, resolveram a questão, fazendo cavar um canal que liga até Hoje o mar de Macaé a Campos. Não creio que sequer um eles tenha ficado alguma hora vendo o riacho nascer dos braços e mãos dos escravos que o construíram.
Pronto o canal, marcou-se a data. O imperador e seus acompanhantes embarcaram no cais da Praça Mauá, suponho; desembarcaram em Macaé e de lá, em barcaças remadas por mais escravos, seguiu pela região até Campos. Almoçava em uma fazenda, dormia em outra, azedo a alegria dos Viscondes de Quissamã, dos Condes de Araruama, da nobreza cafeeira.Esta mesma que anos mais tarde o exilaria.
Todo o meu ser se repugna à idéia de escravidão.De qualquer tipo.
E, se hoje resolvi contar esta história, é para prestar um tributo àqueles que com seu trabalho, sua dor, seu braço construíram, ainda que não por escolha, um caminho de beleza.
O imperador se foi. O café se foi. Os barões se foram.O canal metamorfoseado em riacho está lá.Manso, sereno, abrigo de gente e de bicho. Os homens que o criaram transcenderam o tempo, deixando sua marca, sua história, sua memória.
Como diria Mário de Andrade: “ Fez-se o peru, comeu-se o peru.”




Minha mãe Geny
 
 Nasci em privilégios.Tive duas mães.Minha mãe , moça bonita , que aos 17 anos que aceitou gerar-me , cuidar-me, amar-me, o que faz até hoje .E uma segunda mãe , esta , mãe de leite, que acolheu-me em seio farto e matou-me a fome .Ambas Geny.
Minha mãe de leite era casada com meu tio Francisquinho, irmão de minha avó Nati. De nome Geny também, quando nasci , havia dado à luz meu primo Ademir, Miquinha chamado por todos na infância.Como minha mãe não tinha leite pra saciar minha fome que sempre foi grande, dividiu comigo seu seio e carinho.Era farta de ambos, dava e sobrava.Nasci em sincronias como se vê.
Quero aqui falar da mais mãe de todas as Genys.
Minha mãe Geny sempre foi mulher bela,organizada e mãe zelosa.Seu carinho prático sempre nos cercou de zelos.
 Sempre foi moça prendada. Quando eu menina, fazia-me vestidos.Lembro de um especial.Vermelho vivo com uma flor aplicada .Flor de grandes pétalas boiando presas a uma haste em verde bordada. Eta vestido bonito! Me sentia encantada nele.
Mamãe sempre gostou de casa arrumada , impecável. Adora colchas. Eu , pequena , amava surrupiá-las. Enrolava-me nelas e saia pela casa pequena transformada em reino arrastando a calda colorida. Lembro de um dia, minha mãe olhar-me e dizer a meu pai:- Lá vai ela pensando que é uma princesa. Eu , olhando-a sobre os ombros , disse:- não sou princesa.Eles riram e disseram:- certo, certo, majestade.Julgavam-me rainha.Eu não sabia,mas minha alma lembrava.Nem rainha , nem princesa.Fada apenas.Sacerdotisa de muitas eras.
Fada que nada. Fada mesmo é minha mãe. Suas mãos sempre cuidaram.Bordaram, teceram, cozeram, curaram muitas dores.
Ontem , ela fez aniversário. Coisinha pouca além de setenta. Não conto quantos porque fadas são atemporais.
Queria tanto ter-lhe dado um presente digno de sua grandeza. Queria ter sido filha melhor,mais perto, mais comportada, mais de acordo. Sempre fui às avessas. Em pequena, por mais que ela me banhasse, limpasse , pusesse laços, vivia desengonçada. Sujava-me caindo, tinha pernas tortas, era gorda.Meus cabelos, mais teimosos que eu, nunca concordavam em ficar bonitos como ela tentava fazê-los.Um desastre !Ate´hoje ela exclama  com  a filha de perplexidades:- Esta menina não toma jeito.Adoro o jeito dela dizer  isto. Prometo emendar-me  , rezar pela cartilha, mas  qual... fada mesmo é minha mãe. Fada sempre em sua impecabilidade , na graça com que toca o mundo, iluminando a vida de quantos tem a alegria de amá-la.




Quando nasci

Quando nasci, deu-se o fato em casa de meus avós paternos. Muitas mulheres; avós, bisavós, tias .Dizem que as sábias criaturas, todas versadas em muitas artes, inclusive a que domina o conhecimento das ervas e os mistérios do nascimento, expulsaram o pobre médico de roça, chamado por meu pai, e , amorosamente, me ajudaram a vir a este mundo.

Minha mãe havia decido chamar-me Rosângela, pois, sua única amiga tivera meses antes uma filha que recebeu este nome. Era a única por aquelas bandas. Como a imaginação nunca foi qualidade cultivada por minha mãe( que , felizmente tem outras, inúmeras), seria eu Rosângela.

Reza a lenda familiar, que ao nascer, fui tomada nas mãos de minha madrinha, irmã mais velha de meu avô. Doce , porém, firme matriarca.Conta-se que ela, Tia Guima, Guiomar chamada, me tomou nas mãos , levou-me à janela de onde se via o sol,nascendo , apresentou-me a ele e pronunciou:- Esta menina não tem cara de Rosângela.Tem cara de Ana Lúcia. Fiquei sendo Ana Lúcia. Devia ter-lhe perguntado por quê . Agora é tarde.

Entretanto, adoro meu nome. Descobri em um livro do espanhol Juan Atienza que Lúcia deriva de Lucina, a face feminina de Lug, nome da divindade entre o povo Thuata de Danan. Como a Luz que emanava de Lug era muito intensa, nós, mortais, não podíamos nos dirigir a Ele diretamente.Precisávamos do auxílio de Lucina, a portadora da Luz. De seu nome derivam também Lázaro, Luiz, Luiza .Nomes todos mais tarde ligados a símbolos de compaixão.

Ana, ensinou-me ainda Atienza, nos vem do hebráico Hanna, que nos tempos de muitas eras significava Grande Mãe.

Quando meu nome ficou assim desvendado fiquei mesmo pensando em por quê minha doce dindinha havia me inventado nome tão exigente.

Hoje, faço o possível para honrá-lo, honrá-la. Onde vou busco criar um tempo /espaço de bondade e compaixão; resgatar o Sagrado; alegrar a vida; influenciar para o melhor.

Quando conto histórias, seja pra menino de escola, jovem de periferia, presidente de banco, me torno fada , na tentativa de pelo Mito, pela lenda, lembrar às suas almas o mistério que conhecem e que jaz soterrado . O Indizível .

Esta a razão de meu Ofício.

Ufa. Devem todos estar cansados de tantas palavras.Relevem, é o tempo sabático .

O dia em que conheci Drummond

Há muitos anos, quando eu era uma jovem universitária, aconteceu uma sequência de fatos inesquecível. Vou contar.
Eu era, já então, apaixonadíssima pela obra de João Guimarães Rosa e pelos versos de Drummond. Aliás, pelo Drummond poeta, ser humano, mineiro. Pelo ser quase mítico, escorregadio. De riso contido, olhar de vislumbre, palavra precisa.
Na época, a obra do Rosa encontrava-se esgotada. Nunca gostei de ler livro de biblioteca. Gosto de livro meu, que possa marcar, escrever, ter para sempre à mão e ao pé do coração.
Havia, naqueles anos, um sebo famoso no Rio. O Sebo da Livraria São José, na rua de mesmo nome. Lamentavelmente, virou, em anos recentes, uma loja de uma destas cadeias de comida rápida. Infame crime. Deixou de alimentar almas e sonhos e não alimenta outras fomes.
Pois bem. Depois de longa peregrinação por todos os sebos do centro do Rio, resolvi aceitar a sugestão do livreiro e encomendei os volumes da obra de Rosa. Espera ansiosa por Grande Sertão: Veredas, Tutaméia, e todos os outros. Já havia lido o que se podia encontrar: Primeiras Histórias e Sagarana.
Eis que um dia, recebo a ligação: seus livros estão a sua espera, senhorita. Achei tão bonitinho o senhorita. Me fazia quase personagem.

Lá fui eu, toda faceira, buscar meus livrinhos. Sebos me atraem profundamente. Os livros parecem sussurrar segredos. Os que encomendara estavam já separados. Entretanto, fiquei, como dizia minha avó, ciscando pelos corredores penumbrosos em busca não sabia de quê. Encontrei, então, Menino Antigo, que, claro, estava esgotado. Não poderia resistir. Peguei-o da estante e dispus-me a levá-lo comigo.
Foi nesta altura que percebi um cavalheiro trajado de terno escuro; alto, quase solene. Óculos sobre o olhar sereno. Olhava-me entre divertido e intrigado. Sorriu. Sorri. Encabulados sorrisos.
Era preciso ir. Paguei os livros já embrulhados. E sai para o sol que inundava a tarde. Logo notei que o solene cavalheiro seguia-me. Fiquei intrigada. Desde os corredores do falecido sebo, tinha a incômoda sensação de conhecer o discreto cavalheiro, sem que, no entanto, atentasse com quem fosse. Amigo da família? Avô ou tio de amiga? Antigo professor? Nada. Apenas aquela indecifrável coceira na memória.
Eu ia em direção ao já extinto Largo da Carioca, onde tomaria o ônibus que me levaria até Santa Tereza, onde trabalhava. Em uma certa esquina, esperando o momento de atravessar, nem me espantei quando o cavalheiro se dirigindo a mim disse:  – Não pude deixar de notar que a senhorita comprou livros de Rosa e de Drummond. Há de concordar ser algo inusitado em pessoa tão jovem.
Eu, no alto de meus 18 anos, cheia de fervor e paixão retruquei:
- Isto é porque o senhor não me conhece. Sou apaixonada pelos dois. Não posso viver sem ter lido a obra todinha do Rosa e Drummond, bom Drummond é simplesmente meu poeta favorito. São meus dois maiores amores. E como estudo Literatura na Universidade, acho também, por isso , muito natural, lê-los.

Percebi um sorrisinho travesso em sua face.
Fomos conversando animados enquanto eu escarafunchava minha memória em busca do nome do dono de boa conversa, fina cultura e delicada presença. Mas, nada.
Falamos de poesia e juventude. O misterioso cavalheiro disse que não acreditava que eu conhecesse de forma razoável a obra de Rosa. Atrevida, cansei-o com citações de contos lidos, análises, reverências. Cega como pavão, nem percebi o brilho divertido em seu olhar e muito menos o tom de intimidade com o qual falava de Rosa. Não era esta intimidade de leitor. Era algo além. Mas, quem disse que eu enxergava palmo além de meu nariz?
Divertido e desafiador disse estar convencido,mas que ainda duvidava de que lesse Drummond. Rindo, recitei-lhe versos gravados na alma: José, Mãos Dadas, Poema de Sete Faces, Amar, Entre o Ser e as Coisas. Um sarau em plena tarde. Seu olhar cobria-me de ternura e algo que não decifrei na hora, ocupadíssima em exibir-me.

Chegamos, por fim , ao Largo da Carioca. Despedimo-nos.
Logo que sentei no ônibus, abri o pacote ansiosa para ler meus livrinhos. O primeiro foi Menino Antigo. Lá, dentro do livro, por trás de seus óculos, fitava-me o Poeta. Parecia troçar de mim. Era ele o misterioso cavalheiro. Como pude ser tão cega, tola? Como não vi logo que estava diante de meu Mestre?
Fiquei feito boba, recriminando-me.

Depois consolei-me. As lendas sobre a timidez e caráter reservado do Drummond corriam pela cidade. Quem sabe, não falaria comigo se notasse ter sido reconhecido. Muito menos eu teria tido coragem e atrevimento para falar com ele. Menos ainda para recitar-lhe os amados versos.
Passei a buscar o poeta nos lugares que todos sabiam freqüentados por ele. No sebo. No terminam Menezes Cortes onde ele costumava pegar o frescão. Nada. Nem sinal do Mito.
Até que um dia, vi-o, pela vitrine de confeitaria, tomando chá. Afivelei minha cara mais cínica e entrei. Olhava em busca de um lugar para sentar-me, com a naturalidade de uma atriz. De repente, nossos olhares se cruzaram. Breve sorriso. Um aceno. Meu coração batia ensandecido. Aproximei-me da mesa. Cumprimentei-o. Ele levando-se, apertou-me a mão. Senti-me velha conhecida. Convidou-me a sentar. Tomamos chá e comemos delícias. Eu decidir não dizer nada. Era como se apenas tivéssemos interrompido a conversa do outro dia. Sabia que não podia pedir-lhe autógrafo, dedicatória, opinião.
Foi-se. Fui. Fomos. Tácitos.
Disse quase indo que todas as semanas tomava chá ali, em determinado dia. Gostaria de ver-me, ouvir-me vez por outra. Não podia acreditar em tamanha sorte. Todas as Musas e o próprio Apolo pareciam tramar a meu favor.
E assim foi que por muito tempo, enquanto morei na Maravilhosa Cidade, tomei vez por outra chá com um  Mito, um Mestre, um Amor. Poeta maior. Digno, generoso ser humano, capaz de ter paciência com a minha intolerável ignorância de 18, 19, 20 anos. Seu sorriso benevolente e sua doçura marcaram-me além do dizível. Mais quem sabe que sua própria poesia.





Quando nasci

Quando nasci, deu-se o fato em casa de meus avós paternos. Muitas mulheres; avós, bisavós, tias .Dizem que as sábias criaturas, todas versadas em muitas artes, inclusive a que domina o conhecimento das ervas e os mistérios do nascimento, expulsaram o pobre médico de roça, chamado por meu pai, e , amorosamente, me ajudaram a vir a este mundo.

Minha mãe havia decido chamar-me Rosângela, pois, sua única amiga tivera meses antes uma filha que recebeu este nome. Era a única por aquelas bandas. Como a imaginação nunca foi qualidade cultivada por minha mãe( que , felizmente tem outras, inúmeras), seria eu Rosângela.

Reza a lenda familiar, que ao nascer, fui tomada nas mãos de minha madrinha, irmã mais velha de meu avô. Doce , porém, firme matriarca.Conta-se que ela, Tia Guima, Guiomar chamada, me tomou nas mãos , levou-me à janela de onde se via o sol,nascendo , apresentou-me a ele e pronunciou:- Esta menina não tem cara de Rosângela.Tem cara de Ana Lúcia. Fiquei sendo Ana Lúcia. Devia ter-lhe perguntado por quê . Agora é tarde.

Entretanto, adoro meu nome. Descobri em um livro do espanhol Juan Atienza que Lúcia deriva de Lucina, a face feminina de Lug, nome da divindade entre o povo Thuata de Danan. Como a Luz que emanava de Lug era muito intensa, nós, mortais, não podíamos nos dirigir a Ele diretamente.Precisávamos do auxílio de Lucina, a portadora da Luz. De seu nome derivam também Lázaro, Luiz, Luiza .Nomes todos mais tarde ligados a símbolos de compaixão.

Ana, ensinou-me ainda Atienza, nos vem do hebráico Hanna, que nos tempos de muitas eras significava Grande Mãe.

Quando meu nome ficou assim desvendado fiquei mesmo pensando em por quê minha doce dindinha havia me inventado nome tão exigente.

Hoje, faço o possível para honrá-lo, honrá-la. Onde vou busco criar um tempo /espaço de bondade e compaixão; resgatar o Sagrado; alegrar a vida; influenciar para o melhor.

Quando conto histórias, seja pra menino de escola, jovem de periferia, presidente de banco, me torno fada , na tentativa de pelo Mito, pela lenda, lembrar às suas almas o mistério que conhecem e que jaz soterrado . O Indizível .

Esta a razão de meu Ofício.

Ufa. Devem todos estar cansados de tantas palavras.Relevem, é o tempo sabático do fim de semana.





A VOCAÇÃO PARA SER FELIZ
Ando investigando, ultimamente, de onde me vem esta inefável, implacável, intangível e inquestionável vocação para ser feliz. Não digo que não lide quase sempre com dores várias, perdas, dúvidas, massacres, enfim, com toda a sorte de dificuldades costumeiras. Lido, sim, como qualquer um. Entretanto, lá pelos 15 anos, percebi que não persisto na dor. Antes, eu dizia isto de forma menos elegante: “- Não tenho saco pra sofrer.” Ando apurando o estilo, como se vê . Bom, pensa daqui, investiga dali, fui lembrando-me de certas cenas de minha infância. Imagino que elas estão na gênese desta minha vocação.Fui cercada, desde que cheguei a esta vida, de seres muito amorosos e amoráveis. Pai, mãe, avós, bisavós, tios e tias, cada um à sua maneira, acalentavam, alimentavam meu pequeno ser e minha alma faminta.

Quero falar hoje de meu pai, Reginaldo, de nome chamado. Regi, entre amigos e parentes. Sujeito assaz engraçado. Lembro que, quando criança, íamos a festas , minha mãe fazia as costumeiras recomendações sobre bom comportamento, incluindo-o. Nunca adiantava.Já chegava distribuindo sorrisos e piadas. Nunca vi alguém pra contar piada como ele. Até hoje. É sempre a alma de qualquer festa. Nós morávamos no Rio, longe ( na época era muito longe) de nossa gente que morava na roça ,num lugar antes sem progresso, conforto, transporte. Lugar chamado Morrinhos, entre duas cidades surgidas ao redor de usinas de açúcar: Carapebus e Quissamã. Região norte fluminense. A cidade grande mais próxima é Macaé. Hoje, tem a ponte; tem estrada, ônibus, carro.Tem até avião. Naqueles tempos de infância, anos 60 encantados, havia trem. De dois tipos: o noturno e o expresso. Eu adorava o expresso. Ia-se de dia. A viagem começava na magnífica Estação de Barão de Mauá. Mais bela, para mim, que as gares francesas. Chegar lá era uma aventura. Uma odisséia. Minha jovem e bela mãe, meu pai e seus três pirralhos, dos quais sou a mais velha. O mais novo, João, ia no colo. Eu e Ricardo, o do meio, íamos nos pendurando em barras de calça e saia , como dava. Minha mãe nos dava a mão para as difíceis travessias de ruas, entradas de ônibus. Nos acomodava. A meu pai cabia a tarefa natural de levar a mala. Não havia malinhas. Era uma mala só para todos. Coisa digna de ver-se. Parecíamos retirantes definitivos. A mala era portentosa. Lembro de meu pai resmungar, entre dentes. O que nunca entendi era que entremeava os resmungos com histórias, piadas, lições, durante todo o trajeto. Antes de embarcar, comprava-nos revistinhas.  Para mim, sempre Luluzinha, revista de menina. Embarcados, sentados em infindáveis disputas por colos e janelas, ia ele nos mostrando os lugares pelo qual o trem passava. Nunca tive melhores aulas de geografia. Dizia o nome das estações. Havia uma, inesquecível, com nome de poeta:Casimiro de Abreu. Ele sempre recitava um pedacinho de Meus Oito Anos. Poeminha emblemático. Lá, comíamos bananas assadas e papai comprava mariola pra levar pra fazenda. Viagem de dia inteiro. Mala, banana, farnel. Éramos felizes. Chagávamos bem de noitinha. Cansados. Felizes. Mimados. Quando as férias acabavam, lá íamos rabugentos pra casa. A gente queira ficar pra sempre lá. Entre primos muitos, cana doce, carambola, comida de velho fogão à lenha, biscoito de polvilho que vovó fazia. Papai sempre achava que a mala tinha ficado mais pesada. Tinha mesmo. Vovó costuma enfiar por entre as roupas latas de goiabada cascão e de doce de batata doce feitos por ela em tacho de cobre e fogo de lenha. Ah! sabores perdidos. A volta era longa. Mas éramos felizes.
Naqueles tempos difíceis, meu avô costumava mandar galinhas para melhorar a comidinha nossa de cada dia. Havia em nosso quintal de subúrbio um galinheiro sempre bem povoado graças aos cuidados de vovô. Outro dia, perguntei a papai como afinal as galinhas chegavam ao longínquo galinheiro. Eu, pequena, só me dava conta de que chegavam em um engradado. Meu pai riu e comoveu-se com minha pergunta e respondeu-me: de trem. Como de trem? Explicou então o feliz Regi:- seu avô punha as penosas num caixote e despachava na estação do Itaquira.- Ah! Tá bom. Agora, sim. Mas, como as levava até lá? - A cavalo, respondeu.-Hum...- E como chegavam ao galinheiro?- Eu ia pegar em Barão de Mauá.-Como, se a gente morava tão longe?-Fácil, disse papai com voz de quem revive aventura. Seu avô telegrafava dizendo o dia em que as famosas galinhas chegariam. Eu ia esperar o trem em Barão de Mauá .Pegava o caixote, quase sempre com 12 , 15 penozinhas, e ia , com ele na cabeça,até a estação de trens do subúrbio que ficava ali perto.Quando chegava na estação perto de casa , saltava e lá ia caminhando e assoviando.Meu pai sempre adorou assoviar.- Era só um pouco mais difícil do que a mala, riu ele. Coisas assim e muitas outras como excursões familiares à Quinta da Boa Vista ou à Barra da Tijuca, com direito a arroz na panela, ovos cozidos, farofa, galinha frita, laranjas e bananas eram comuns. A gente não achava difícil. Era muito natural. Éramos felizes. Foi assim que desenvolvi esta vocação para a felicidade. Não importa o peso da mala. Importa levá-la. Não importa quão longa e dura a viagem. Importa viajar. É por estas outras que, com mais de 50 aninhos, chego à conclusão de que serei para sempre poeta, leitora, comedora de bananas, farofeira e feliz.




A FADA PEREGRINA


Em muitos lugares, chamam-me Fada Peregrina. Esta história de fada é engraçada. Tem gente que me acha uma tola, ou, no mínimo pueril. Jogam-me os anos de experiência pela frente. Eu, como Quintana, passarinho. Acho gozadíssimo. Como uma persona dramática incomoda, não é? Quando prestam atenção, percebem minúcias.

Conto-lhes, hoje, a origem de tão controversa personagem. Ao contá-la, justifico-me como profissional de RH também. Vamos à gênese da Fada Peregrina, ou de como começou esta maluquice. Deu-se que, em um determinado grupo de discussão de Recursos Humanos on line, discutia-se Gestão do Conhecimento. Alguns mais afoitos tiveram a iniciativa de escrever a muitas mãos uma peça sobre o tema. Tudo muito racional. Lá pelas tantas, eu desesperada com tanta rigidez, clamei, meio ao estilo do grande Martins Pena, alguma coisa assim: - Valham-me todas as musas e deuses do Olimpo. Onde o mistério? Lembrei que, em grego , teoria significa o Ser em contemplação. Contemplação de quê? Do Mistério.

Ficou engraçado. Um inspirado gaiato, a título de provocação, criou de supetão uma fada que surgia do nada, deus ex machina, metáfora das competências emocionais e, em desafio tascou: - Ana, agora escreve as falas da fada.Não me fiz de rogada e lá fui. A peça ficou a meio caminho. Mas eu curti a persona. Chamei-a Fada Peregrina.

Fada porque é uma metáfora da transformação, uma homenagem a meu mestre Joseph Campbell, com quem aprendi o valor do Mito.Quem fala por mitos, fala a qualquer um , em qualquer tempo.Isto dá-se comigo.Falo com gente de mão suja de graxa e presidente de banco.O Mito fala uma linguagem imortal, perene.

Peregrina porque, embora tenha casa na Bela e Santa Catarina e aqui more oficialmente, meu escritório é em Sampa, juntinho à Paulista. Nada mal para uma fada, não é? Fada que ainda por cima mora no interior. Além disso, trabalho com treinamentos, palestras, consultorias. Quer dizer, vivo na estrada. Pessoas comuns viajam. Eu peregrino. E o som do nome é bom.

Comecei, então, naquele grupo a assinar-me Fada Peregrina a cada mensagem. Pegou. Como participo de alguns grupos, pois, tenho muitos e variados interesses e sou um ser gregário, ficou muito difícil assinar fada em um e Ana em outros. Um dia, tomei coragem, seguindo os conselhos de Aristóteles, e assinei em todos os grupos Fada Peregrina.

De início, houve espanto e até revolta. Onde já se viu? Que maluquice. O Pau comeu. Pessoas especialíssimas defenderam meu direito de assinar-me assim. Com o tempo, o povo se acostumou. Ou, começou a ver que sou uma fada muito fundamentada, nada tendo de pueril.

Na universidade, era até engraçado.Como dava aula em um campus rural, ficava muito bem integrada, esvoaçava. Meus alunos proclamavam aos quatro ventos que tinham uma fada peregrina como professora. Divertia-me e aproveitava para influenciar.

Na escola, as crianças pequenas para as quais vez por outra conto histórias usando fantasia e tudo juram que sou uma Fada que durante o dia disfarço-me de gente comum. Acendo-lhes a imaginação que, como se sabe, precisa ser maior do que o conhecimento.

Hoje, nas empresas às quais presto serviço, na primeira oportunidade, revelo minha, digamos, identidade secreta.E acabo sendo chamada carinhosamente de Fada Peregrina.Em uma delas, a poderosa Rede Globo de Televisão, junto com o apelido, ganhei de presente um pingente em forma de fada, com lindos strass. Brilha sempre em meu colo.Mais que enfeite, símbolo. E, assim, acaba por enquanto a história de como uma Ana Lúcia, virou "Aninha, Fada Peregrina"

2 comentários:

  1. Maninha seu blog está MARAVILHOSO, seus textos como sempre cativantes, envolventes e enebriantes, vc tem o dom da palavra!!!!
    É muito bom ter vc nesta jornada chamada vida!!!!

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  2. MARIA JOANA BUENO POPIA -AMIGA DA TATI13 de novembro de 2010 às 23:31

    Adorei a historia vocação para ser feliz...Linda, Ana!!

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